Que valor tem uma data num quotidiano efémero?
Que significado transporta uma imagem ou um poema aos sentidos embotados pela sua banalização?
Que fazer com um legado que persiste tão presente?
As respostas são plurais, como o é a nossa vida. É essencialmente uma visão que rejeitou o plural que esta semana se relembra, para que os seus efeitos permaneçam indeléveis no espaço da memória colectiva.
Volvido mais de ½ século sobre o dia 27 de Janeiro de 1945, em que as tropas soviéticas libertaram o maior campo de concentração nazi, o de Auschwitz-Birkenau, o pensamento e o poema da semana recriam a experiência indizível de muitos dos seus ocupantes, valorizando, simultaneamente, o poder libertador da palavra e do texto literário.
PENSAMENTO DA SEMANA
"Apenas uma coisa permaneceu acessível, próxima e segura no meio de todas as perdas: a linguagem. Sim, a linguagem. Apesar de tudo, manteve-se protegida contra a perda. Mas teve de passar pela sua própria falta de respostas, através do silêncio aterrador, através das mil escuridões do discurso assassino. Atravessou. Não me deu palavras para o que estava a acontecer, mas atravessou-o. Atravessou e pôde ressurgir, "enriquecida" por tudo isso. "
Excerto das palavras proferidas por Paul Celan, em 1958, ao receber o Prémio Literário da Cidade Livre Hanseática de Bremen
POEMA DA SEMANA
Fuga da Morte
de Paul Celan
Leite negro da madrugada bebemo-lo ao entardecer
bebemo-lo ao meio-dia e pela manhã bebemo-lo de noite
bebemos e bebemos
cavamos um túmulo nos ares aí não ficamos apertados
Na casa vive um homem que brinca com serpentes escreve
escreve ao anoitecer para a Alemanha os teus cabelos de ouro
Margarete
escreve e põe-se à porta da casa e as estrelas brilham
assobia e vêm os seus cães
assobia e saem os seus judeus manda abrir uma vala na terra
ordena-nos agora toquem para começar a dança
Leite negro da madrugada bebemos-te de noite
bebemos-te pela manhã e ao meio-dia bebemos-te ao entardecer
bebemos e bebemos
Na casa vive um homem que brinca com serpentes escreve
escreve ao anoitecer para a Alemanha os teus cabelos de ouro
Margarete
Os teus cabelos de cinza Sulamith cavamos um túmulo nos ares
aí não ficamos apertados
Ele grita cavem mais fundo no reino da terra vocês aí e vocês
outros cantem e toquem
leva a mão ao ferro que traz à cintura balança-o azuis são os seus
olhos
enterrem as pás mais fundo no reino da terra vocês aí e vocês outros continuem
a tocar para a dança
Leite negro da madrugada bebemos-te de noite
bebemos-te ao meio-dia e pela manhã bebemos-te ao entardecer
bebemos e bebemos
na casa vive um homem os teus cabelos de ouro Margarete
os teus cabelos de cinza Sulamith ele brinca com as serpentes
E grita toquem mais doce a música da morte a morte é um mestre
que veio da Alemanha
grita arranquem tons mais escuros dos violinos depois feitos fumo
subireis aos céus
e tereis um túmulo nas nuvens aí não ficamos apertados
Leite negro da madrugada bebemos-te de noite
bebemos-te ao meio-dia a morte é um mestre que veio da Alemanha
bebemos-te ao entardecer e pela manhã bebemos e bebemos
a morte é um mestre que veio da Alemanha azuis são os teus olhos
atinge-te com bala de chumbo acerta-te em cheio
na casa vive um homem os teus cabelos de ouro Margarete
atiça contra nós os seus cães oferece-nos um túmulo nos ares
brinca com as serpentes e sonha a morte é um mestre que veio
da Alemanha
os teus cabelos de ouro Margarete
os teus cabelos de cinza Sulamith
In Sete rosas mais tarde. Antologia poética. Seleção, tradução e introdução de João Barrento e Y. K. Centeno. Lisboa: Edições Cotovia, 1996, pp. 15-19.