terça-feira, 12 de outubro de 2010

Elogio da Biblioteca (3)

«E você fica com o livro por quanto tempo quiser.» Entendem? Valia mais do que me dar o livro: «pelo tempo que eu quisesse» é tudo o que uma pessoa, grande ou pequena, pode ter a ousadia de querer.
Como contar o que se seguiu? Eu estava estonteada, e assim recebi o livro na mão. Acho que eu não disse nada. Peguei o livro. Não, não saí pulando como sempre. Saí andando bem devagar. Sei que segurava o livro grosso com as duas mãos, comprimindo-o contra o peito. Quanto tempo levei até chegar em casa, também pouco importa. Meu peito estava quente, meu coração pensativo.
Chegando em casa, não comecei a ler. Fingia que não o tinha, só para depois ter o susto de o ter. Horas depois abri-o, li algumas linhas maravilhosas, fechei-o de novo, fui passear pela casa, adiei ainda mais indo comer pão com manteiga, fingi que não sabia onde guardara o livro, achava-o, abria-o por alguns instantes. Criava as mais falsas dificuldades para aquela coisa clandestina que era a felicidade. A felicidade sempre iria ser clandestina para mim. Parece que eu já pressentia. Como demorei! Eu vivia no ar… Havia orgulho e pudor em mim. Eu era uma rainha delicada.
Às vezes sentava-me na rede, balançando-me com o livro aberto no colo, sem tocá-lo, em êxtase puríssimo.
Não era mais uma menina com um livro: era uma mulher com o seu amante.


Clarice Lispector, Felicidade Clandestina

Elogio da Biblioteca (2)

Faz parte das minhas lendas – como essa de dizer-se que eu sabia o Larousse de cor aos sete anos − atribuírem-me centenas de visões do Johnny Guitar. Num caso como noutro há exageros. Só vi o Johnny Guitar 68 vezes, entre 1957 e 1988. (…)
(…) Como as coisas muito grandes, Johnny Guitar não se explica. Conta-se (vê-se) outra, outra e outra vez como as histórias que se contam às crianças, até que tudo se saiba de cor e se aprenda que tudo está certo nelas. (…)
Quando o bando de Emma entra pelo saloon de Vienna, para a prender, os misteriosos croupiers param as roletas. Enfrentando Emma com o seu terrível olhar, Vienna, sem desviar os olhos dela, dá uma seca ordem: «Keep the wheel spinning, Ed. I like to ear it spin. No fim de cada visão de Johnny Guitar só me apetece dizer aos projeccionistas: «Keep the film spinning. I like to see it spin.» Tanto, tanto.


João Bénard da Costa, Os Filmes da Minha Vida

Elogio da Biblioteca (1)

A miúda fitou-me com os seus olhos azuis, sorriu imperceptivelmente e sentou-se ao piano. Ajeitou a saia à roda do banco e, de mãos imóveis no teclado, apesar do nosso silêncio, esperou ainda pela nossa atenção ou pela sua.
E então eu vi, eu vi abrir-se à nossa face o dom da revelação. Que eram, pois, todas as nossas conversas, a nossa alegria de taças e cigarros, diante daquela evidência? Tudo o que era verdadeiro e inextinguível, tudo quanto se realizava em grandeza e plenitude, tudo quanto era pureza e interrogação, perfeito e sem excesso, começava e acabava ali, entre as mãos indefesas de uma criança. Mas tão forte era o peso disso tudo, tão necessário que nada disso se perdesse, que as mãos de Cristina se estorciam na distância das teclas, suas pernas na distância dos pedais e toda a sua face gentil, até agora impessoal e só de infância, se gravava de arrepio à passagem do mistério. Toca Cristina. Eu ouço. Bach, Beethoven, Mozart, Chopin. Estou de lado, ao pé de ti, sigo-te no rosto a minha própria emoção. Apertas ligeiramente a boca, pões uma rugazinha na testa, estremeces ligeiramente a cabeleira loura com o teu laço vermelho. E de ver assim presente a uma inocência o mundo do prodígio e da grandeza, de ver que uma criança era bastante para erguer o mundo nas mãos e que alguma coisa, no entanto, a transcendia, abusava dela como de uma vítima, angustiava-me quase até às lágrimas. Toca uma vez ainda, Cristina. Agora só para mim. Eu te escuto, aqui, entre os brados deste vento de Inverno.


Vergílio Ferreira, Aparição